L’Étape du Tour 2017

Durante a viagem de regresso a Portugal depois do Ironman Barcelona fui passando por um conjunto de sentimentos que oscilavam entre o vazio e o “não pode ser só isto”. Não era só a bicicleta que estava no banco de trás. Eram anos de histórias, conversas, dezenas de horas agarrados à televisão a ver a Volta a França, a devorar as revistas da especialidade e, mais tarde, ao telefone a comentar as etapas. A vontade de viajar para fazer aquelas subidas que víamos na TV – do Perico Delgado ao Indurain. Ullrich. Virenque. Pantani e Armstrong – que se ficou por um passeio a dois em bicicletas alugadas em Aigle, durante umas férias na Suíça. Faltava muito mais. As subidas míticas, os Monumentos, tudo adiado porque a reforma era já ali. Porque não tínhamos tempo nem vida para isso.

Não podia ser só isto. E a verdade é que não só o sentimento mas tê-lo vivido na própria bicicleta inspirou-me e, inconformado, decidi não me render. L’Étape du Tour, a prova para amadores que percorre uma das – frequentemente, a – etapa Raínha do Tour de cada ano.

Inscrevi-me e escrevi na altura no Facebook: “Dreams are made to come true.”

Este era o vídeo de apresentação do traçado.

O percurso é deslumbrante. A maior dureza começa em Barcelonnette onde, após 100 km, começa a subida aos quase 2.200 m do Col de Vars. Antes do prato forte do dia, há ainda uma descida até Guillestre para retemperar forças antes de encontrar o gigante que dá pelo nome de Izoard e a mítica Casse Deserte, berço de tantas lendas e momentos épicos. Cassete puxada atrás. Bartali. Coppi. Bobet. Thevenet.

Treinei nos meses seguintes, meti-me no rolo e numa série de Granfondos para ir mantendo o andamento. Fiz Évora e Palmela, logo seguidos por nova dose do Half-Ironman Lisboa Triathlon.

Encomendei uma caixa para a bicicleta, uma Bike Box Alan, e foi a primeira vez que desmontei e viajei de avião com a Roubaix. Packed and ready to go.

Um filme para a meter na caixa, à primeira vez é tudo mais difícil, como difícil foi despedir-me dela no balcão de fora de formato do Terminal 2 do Aeroporto de Lisboa. Rezas com fartura, uma fita a dizer fragile e tratem bem dela!

Chegada a Milão, onde ficámos em casa de amigos, ver que a menina tinha sobrevivido ao voo e estava de saúde, levantar a carrinha de aluguer, espaçosa, e era tempo de uma volta rápida pelo centro e jantar. Ficou na memória a Pizza… Dali 🙂

Arrancámos para a Briançon, com direito a passagem pelas belíssimas Dolomites e estradas de montanha de cortar o fôlego.

Fomos diretos ao check-in no Rapha Truck (linda a da Étape anterior, com homenagem a… Tino).

Chapas com o Diabo Didi, start list e visita a uma tenda de merchandise difícil de abandonar.

Tudo certo, desfrutar do ambiente, take your time. E foi hora de um erro básico: foi já bastante tarde, de volta ao alojamento, que montei a bicicleta. Um dos 2 parafusos que apertam o avanço à coluna de direção partiu-se, mesmo tendo tido o cuidado de levar e usar uma chave dinamométrica. Fiquei pior que estragado, o parafuso partiu lá dentro e não tinha como tirar. Era de titânio. Para poupar peso. Boa. Nunca mais.

Ainda andei pelo hotel, perguntei a outros ciclistas que lá estavam alojados se podiam ajudar de alguma forma, mas nada… coisas de maçarico e uma camada de nervos enorme que não me tornou, de todo, na melhor companhia. Acabei a pedir desculpa aos meus amigos, ainda mais depois de me terem metido a cortar cebola com as t-shirts que prepararam (obrigado Renato!) de surpresa para o evento especial: “Étape du Pigeon”. Sacanas! Quem tem amigos assim tem tudo. 

Respirei fundo e fui dormir a pensar no menu do dia seguinte.

De manhã fomos mais cedo ainda a contar com o milagre e, depois de deixar o carro no parque subterrâneo, fomos diretos ao suporte da Shimano… mas nada a fazer. Ia ter que andar com muito jeitinho, sobretudo a descer, e com uma pontinha de sorte à espreita.

Boxes de partida sem fim, éramos 16000! Despedidas, partida direita-esquerda por cima de uma ponte de uma descida bem longa abria o dia em alta velocidade. Pouco depois, passagem numa vila que por mim valeu como um concentrado de espírito do Tour… as cadeiras nas varandas, as maillots coloridas ao vento, bandeirinhas, um regalo.

Rolante até Embrun e primeira subida do dia digna desse nome aos 60 km, a Côte des Demoiselles Coiffées e uma vista fantástica sobre o lago Serre-Ponçon.

30 km depois, rolantes mas sempre a moer, passagem por Barcelonette, mais 10k para Jausiers e, após Tournoux, a entrada no Col de Vars.

A meio da subida a estrada empina mais um pouco e… PING!! Que timing!! Raio rebentado atrás e a roda (Dura-ace, com poucos raios) feita literalmente num oito. Só conseguia andar com o travão completamente desapertado, e mesmo assim a roçar demasiado.
Disparo de adrenalina, queres ver que não acabo isto?!

Epá, vai ter que dar! Acabei por encontrar umas centenas de metros depois um inglês já com alguma idade deitado na relva da berma a arfar e, depois de me certificar que não havia ajuda que lhe fosse útil, perguntei se tinha alguma ferramenta que me emprestasse. E foi com a parte de trás de uma multi-tool que consegui dar algumas voltas e ajustar os raios adjacentes para compensar. Arrastei-me até final da subida, a marcar 128 km, onde havia novo abastecimento e uma tenda de suporte da Mavic.

Pois que não, não tinham raios nem solução… “paciência”. Carro vassoura.
Só que não, não tinha vindo de Portugal para aquilo e logo lhes propus, deitando a mão a uma roda que por ali estava, que trocássemos os carretos, ficavam com a minha e no fim ia ter com eles para desfazer a troca. Ainda deu luta mas estava bastante determinado e foi quando deitei a mão a uma chave e chicote para desmontar a cassete que cederam “ok, ok…”.

Na altura pareceia tudo bem mas, ou por azelhice ou má vontade, assim que comecei a descer e parei de pedalar a primeira vez, ouvi uns barulhos muito estranhos e a bike abanava toda. A descida era vertiginosa e não tive a presença de espírito para voltar atrás. Tinha que ser a cassete mal apertada ou tinham-se esquecido de colocar a anilha. O que é certo é que estava na prática sem roda livre e se não pedalava engatava-se tudo a ponto de o esticador se dobrar sobre si mesmo e saltar a corrente. QUE FILME!

Alguns quilómetros depois parei numa garagem de uma vila, mas não, não tinham as ferramentas para tal proeza. Meio desconsolado com aquilo e com as mudanças a saltar mais que uma bola numa máquina de pinball, voltei a parar numa tenda daquelas de empresas de bike tours que levam ingleses de meia idade, vulgo MAMILS (middle aged man in lycra) a passear em versão VIP package, com voos, alojamento, apoio nutricional, mecânico, etc.

O mecânico (?) estava a afinar as mudanças a um desses fregueses, vagarosamente, e eu fui-me chegando e perguntando se teria uma chave para me desenrrascar. Sem resposta. Vi o que queria na mesa de ferramentas. Tirei o aperto rápido traseiro. Nova tentativa. Meia resposta. E eu a chegar-me à mesa de ferramentas. À 3a tentativa já tinha deitado a mão, nada a fazer, agora só ma tiravam na briga.
O chefe resignou-se, eu dei mais um aperto que nunca seria suficiente porque o que ali faltava era mais uma anilha, mas o que é certo é que melhorou qualquer coisa. As do meio já passavam melhor e, de qualquer forma, dali até ao Izoard era sempre a subir.  

Primeira fase da subida no saco e uma vila – Arvieux – com um café do lado esquerdo e muita, muita gente deitada na relva. Lembro-me de ver um asiático a sofrer com o clima, num kit de marca, impecável, uma garrafa de litro e meio na mão e um ar de quem já dali não sai… e de pensar que se fizesse o mesmo já não saía mesmo. Estava pré-empeno mas tinha que seguir e era já.

Retomei, caminho reto até à saída e o início de uma série de hairpins, já com muitas roulottes nas curvas onde acabei por parar para tirar uma foto e fazer um vídeo curto.

A seleção de mudanças continuava curta, mas a maior limitação eram mesmo as pernas e máquina que andava perto do redline.

Inspirei fundo ao entrar na Casse Deserte, como quem entra para dentro de um cenário épico dos fillmes. Com deferência. De novo flashes de fotos e relatos de subidas épicas de Bartali, Coppi e Louison Bobet entre outros maiores. A bruteza e aridez da paisagem põe a nu, sem paninhos quentes, quem vai a pedalar. Isola-o. Singulariza-o. É verdadeiramente uma paisagem lunar e a mente fugia-me para subir aquilo com mais vento e chuva do que encontrei naquele dia. Hei-de ir. Não resisti a parar uns segundos para sacar uma foto que me lembrasse este sentimento mais tarde e em boa hora o fiz.

As últimas rampas já com o fim à vista entregaram-me a uma subida final a gastar os cartuchos todos, de pé até as cãimbras me sentarem e de pé de novo até ao fim.

O fotógrafo não se terá apercebido mas capturou o momento em que tudo fez sentido. Em que senti uma ligação profunda e em que soube que era ali que queria voltar a estar.

Descida longa, uns 20 kms, com umas parabólicas incríveis e onde aprendi, mesmo depois de já ter descido o Vars a medo e a travar com fartura por causa do problema na roda livre, a descer (mais) rápido e quase sem usar o guiador (do qual não podia mesmo abusar). E foi à custa de jogo de corpo que me lancei num slalom cada vez mais prazeroso em direção a Briançon.

Ainda mandei um par de berros a um cromo que resolveu cuspir para o lado sem olhar já no fim da descida mas era só um fait-divers, era hora de relaxar e desfrutar do momento e foi descer de volta a Briançon com uma felicidade difícil de explicar 🙂

Assim que cheguei ainda faltava uma coisa importante e fui procurar a minha roda para trocar… valeu Mavic!

Aqui fica o Relive para ilustrar. 

Anos mais tarde, em 2022, acabei por fazer a L’Étape Portugal, num registo bastante diferente mas a dar um gostinho da mística e onde pude encontrar novamente o Didi 🙂 Mas tenho o desejo de voltar a França num ano em que o traçado apanhe o mítico Alpe d’Huez e mais uns petiscos naquela zona pouco mais a sul de onde estive e onde a curva 17 é do nosso Tinô.

Já agora, se virem à venda ou souberem como posso obter o tal jersey da Étape 2011, drop me a line!

E foi isto. Vive le Tour!

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