N4 – Estrada do Alentejo Central

Em pequeno tinha um mapa das estradas de Portugal inteiro, desdobrável, da Caixa Geral de Depósitos e entretinha-me a pintar a lápis de carvão os troços que ia fazendo, sozinho ou com o meu Pai, nos arredores de Évora. Sempre me fascinou.
Acho que as ENs têm um encanto especial, talvez por me precederem e serem evocativas de um esforço de ordenamento à escala nacional, como é exemplo o PRN de 1945.
Ao longo dos anos foram sendo substituídas, melhoradas, alguns troços amputados e outros esquecidos. A sua capilaridade é memória das muitas das rotas que as populações usaram ao longo dos anos.
 
Hoje é dia de Estrada Nacional 4, estrada que começa logo no kilómetro 12 devido a incluir no projeto uma ponte nunca construída entre Lisboa e o Montijo.

 

E foi assim que, pouco passava das 13h (uma hora pouco natural, senão estúpida, para iniciar uma empreitada destas), apresentei os pneus numa rotunda do Montijo.
Como estas coisas só têm graça quando não correm bem à primeira, foi só meter os pés aos pedais e… alto e pára a volta!
Tenho 2 pares de sapatos iguais, uns Sidi que o meu Pai me ofereceu e os dele, iguais mas um número acima – 47, que me legou.
Hoje, por significado, decidi trazer os 47.
Hoje, por esquecimento, não trouxe os pedais a condizer.

 

Cleats Shimano em pedais Look Keo. Ainda bem que a Decathlon é a 500m. Comprei os cleats, pedi espaço de bancada para os montar – amavelmente concedido, e… de volta ao marco de partida.

Motor aos copos e lá vou eu, num curto estado de graça que durou 2 rotundas: seatbag mal colocado, carga mal distribuída, e um pendurão enorme atrás do selim, a baloiçar de um lado para o outro e quase a tocar no pneu.Esvaziar o saco, reequilibrar e 5 minutos depois novo arranque, desta vez em definitivo.

Para completar o ramalhete, porque arranquei a estas lindas horas? Porque substimei a preparação para o que ia fazer em modo estreia e passei a manhã com preparativos e ajustes de última hora. O seatbag ia bem aviado, a checklist era longa e, se tudo corresse bem, havia de em permitir passar a noite em autonomia e ensaiar o máximo de material possível:
  • Baselayer
  • Helmet
  • Jersey
  • Bib shorts
  • HR Band + Watch
  • Garmin
  • Sport glasses
  • Gloves
  • Sun screen
  • Front light
  • Rear light
  • Hi-viz gilet
  • Sandwiches
  • Bananas
  • Dry fruit
  • Headphones
  • Multi-tool
  • Pump
  • Tube
  • Tire levers
  • Spoke tool
  • Swiss army knife
  • Shoebag with tools + rags
  • Chain oil
  • Mech hanger
  • Spokes & nipples
  • Caffeine
  • Baby wipes
  • Paper tissues
  • Money
  • ID card
  • Spork
  • Bars
  • Mountain food
  • Shaker
  • Protein
  • Recovery drink
  • Notepad
  • Pepper spray
  • Inflatable trekking mat
  • Liner
  • Tarp
  • Headlight
  • 2x power packs
  • GO Pro c/ cards + battery packs
  • Mobile + charger
  • USB cables
  • First aid kit
  • 2nd mobile for photos
  • Mesh bag to dry clothes
  • Swim shorts
  • Small towel
  • Sneakers
  • Shower gel
  • T-shirt
  • Shorts
  • Glasses
  • Boxers
  • Extra socks & bib shorts
  • Buff + hat
  • Cable lock

 

Claro que houve items a mais na lista inicial e mesmo assim fui carregado que nem uma besta.

Está bom de ver, este foi o meu primeiro ensaio de algo parecido com bikepacking. Li o que pude e, algumas visitas à Decathlon e algumas encomendas online depois sentia-me pronto para o que desse e viesse, com o custo de sensivelmente 9 kg a mais. Praticamente o dobro do peso que puxo normalmente (excluindo a barriga).

Ala que se faz tarde, e comecei passagem na ponte sobre a A33, logo depois do Fórum Montijo. O set-up da carga corria bem, sentia o peso do saco no selim, em particular quando me punha de pé, mas fui-me habituando a compensar.

 

Durante todo o caminho, só (e já é muito) levei uma razia tão valente quanto desnecessária ainda antes de chegar a Pegões, um camião de carga com a via contrária livre. Por falar em razias e filmagens, a GO Pro pouco durou, my bad, tenho que usar uma configuração de baterias mais adequada.

Uma primeira paragem numa bomba de gasolina para encher os bidons e cheguei ao cruzamento com a N10 em Pegões. Recordo-me de ter passado aqui (hei-de colocar o link) e pensado quando faria o cruzamento na perpendicular. Hoje foi o dia.

Kilómetros sem grande história até Vendas Novas, a acompanhar em certos trechos a linha de combóio e nova paragem nas famosas bifanas – desta vez apenas para uma cola e com a promessa de voltar daí a 2 dias.

Ao atravessar a localidade, passei em frente do Regimento de Artilharia e saltaram lembranças de quanto era puto. O tempo aqui não passou, parece que não mudou nada.
Ainda com gás no tanque, aproveitei para rolar e dei por mim na curta mas rija subida à chegada de Montemor. Cruzei a avenida principal e parei para meter água nos bidons, Cola e Pedras num café junto à gare de autocarros.

 

Segmento entre Montemor e Arraiolos e iniciar com a passagem por baixo da auto-estrada, apanhando depois a cortada para a Valeira – ponto intermédio entre Évora e Arraiolos – minha primeira volta de estrada e provavelmente o percurso que mais vezes fiz desde pequeno.
A estrada sobe ligeiramente à chegada a Arraiolos e depois é rolar livre nos kilómetros seguintes, com a paisagem vinhateira como pano de fundo.

 

Paragem seguinte no Vimieiro, com desvio da N4 para entrada na vila e paragem para mais um café. Um puto a tirar as medidas à bicicleta carregada cá fora lembrou-me de quando era eu o puto a olhar para a bike carregada de um gringo qualquer em touring.

O Sol começava a descer e dei conta que perdi a luz traseira. A solução foi adaptar o frontal para o mesmo fim, colocando-o à volta do capacete virado para trás e em modo sinalização.

Estremoz. Indescritível o pôr-do-Sol, quer em termos de ambiente, cheiro e cores. Não dá para descrever. Vão lá se puderem.

A noite caiu perto de Borba e a paisagem aquecida era varrida por insectos e um bafo que arrefecia lentamente.

Entrada na zona da Terrugem e, com mais que 1 metro de berma e belíssimo alcatrão, nunca me senti em perigo, apesar do ondular da estrada.
Os kilómetros rolavam bem, punha-me de pé para descansar as costas e quase não dava pelas subidas, empolgado pela chegada à Raia, e dou por mim chegado a Elvas, brindado com o seu magnífico aqueduto.

Partida em direção à fronteira, com uma enorme descida e ciclovia bem iluminada, a lembrar-me das histórias do meu Avô Zé sobre contrabandistas transfronteiriços, ele que era Guarda Fiscal.

A certa altura a sinalização passou a indicar via reservada e um carro passou por mim a avisar que estava na tira de alcatrão errada.

Este ponto acaba por ditar o fim formal da N4, pelo que após uma inversão de marcha entrei por uma estrada paralela sem iluminação que acompanhava a auto-estrada.

Em pouco tempo a dita estrada retorceu-se e entrava no Bairro da Guarda Fiscal, um antigo posto transfronteiriço atualmente abandonado.

 

Imediatamente depois, tinha chegado ao destino: Caia (ou Caya). Estava terminada a N4!
Era já noite cerrada e o foco seguinte era encontrar onde passar a noite. Ainda me passou pela cabeça ficar num terreno qualquer mas deixei para último recurso… não é preciso destrunfar logo na estreia.
Segui um pouco até uma bomba de gasolina, perguntei onde poderia pernoitar ali na zona. Não me conseguiram ajudar nuestros hermanos e acabei por meter conversa com uma senhora portuguesa que abastecia. Lá me sugeriu o camping da Piedade, em Elvas, mas repliquei que já tinha ligado durante a viagem tendo acabado no voicemail. Assumi que estava fechado naquela altura do ano. Agradeci e continuei a busca já com o corpo a querer encostar.
Tentei vários hotéis em Badajoz, quase tudo lotado por ser véspera de feriado, o que me surpreendeu. Campo Maior ainda ficava longe, o seu Parque de Campismo ainda mais adiante e, pior, com hora fixa de chegada para daí a uns minutos.
Decidi voltar pela estrada escura e de ar duvidoso, uns metros abaixo da auto-estrada, e dei umas aceleradelas para aquecer.
 
A meio da subida para Elvas toca o telefone. Atendi e aconteceu um daqueles momentos que têm uma dimensão ainda maior dada a hora, o cansaço e todo o contexto; dos que marcam uma experiência na memória para muitos anos. Era o responsável pelo Camping da Piedade.
Alertado pela senhora que conheci, e não tendo o meu contacto, ligou o telefone e correu todos os números que tinha com chamada não atendida até me encontrar.
 
Wow.
 
Combinámos daí a 20m e terminei a subida já mais quente! Depois de atravessar a cidade, cheguei ao camping, onde entrei e esperei.
 
Dois dedos de conversa e um GRANDE OBRIGADO ao responsável do CP, cujo nome registei mas omito aqui, e obviamente à senhora que estabeleceu o contacto.
Bem Hajam!
 
Tomei o duche mais quente daquele parque de campismo e vesti roupas confortáveis para preparar a dormida e o jantar.

 

Estava sozinho no camping, que realmente estava encerrado depois de ter sido palco de festas, abri os sacos e retirei o material para passar a noite.

Dispensei a tarp tent, uma maneira compacta e fancy de dizer lona com um conjunto de apoios que serve para proteger da chuva, vento e humidade direta.

O meu T-infinito, com kitchenette

O jantar? Trouxe 3 refeições “de montanha” da Decathlon: água a ferver, fecha-se o zip e 5 minutos depois está pronto. Soube-me pela vida!

Nota: fiz inadvertidamente skip ao passo de mexer entre pôr a água a ferver e fechar o zip porque assim tive a oportunidade de comer grumos de pó não dissolvido. Soube-me pela vida na mesma! Mas da próxima mexo!!
 
Deixei um restinho, talvez meia embalagem, para o pequeno-almoço… vir-se-ia a revelar um pitéu 😉
 
O sono custou a pegar e já passava das 3 quando adormeci: ao piso inclinado e a estranheza pela “roupa de cama” juntaram-se alguns mosquitos, mas tudo levado na desportiva e com espírito da experiência. Dormir de cara ao céu é fora do comum e uma experiência em si mesma. Acho que foi por esta altura que me ocorreu que o “momento bikepacking”, aquilo que procurava sem saber, foi o desenrolar dos acontecimentos que me levou ao camping e, sobretudo, a generosidade expontânea de que fui alvo.
 
Como diria a Mastercard,
noite num motel de Badajoz: 38€;
noite no camping de Elvas: priceless.

Acordei por volta das 7 e meia, ao som dos passarinhos e com o sol a iluminar lentamente o cenário. A minha boa disposição apenas era batida pela profundidade das olheiras! Arrumei a trouxa e pouco depois das 8 e meia segui caminho.

À saída de Elvas fui encontrando companheiros de estrada e durante alguns 15 km dei autenticamente boleia ao clube de ciclismo de Badajoz, a sentir as pernas surpreendentemente frescas tendo em conta o amasso da véspera. Para desalento audível de alguns (não percebi se porque lhes convinha ou porque me queriam fazer a folha…), a certa altura cortei em direção a Juromenha, terra onde o meu Pai nasceu, à beira do Guadiana.

Primeiro no Largo da Guarda, a percorrer as casas tentando perceber alguma relação, depois pelas ruas de pedra, fui descobrindo o lugar.

Depois de uma curta volta de reconhecimento, demorei-me na Fortaleza.

Eu nasci no Alentejo

À beira do Guadiana

Dá-me orgulho quando vejo

A paisagem Alentejana

Durante mais de uma hora, senti a paisagem. Enchi as medidas. 

Café no bucho e segui caminho. Alguns kilómetros de estradas ondulantes acabaram numa subida junto a uma bomba de gasolina, onde entrou mais uma cola e um pacote de batatas fritas de presunto, que o sal do suor não aparece do nada e parece que ajuda com as cãibras.

Depois de contornar o Alandroal cheguei à bonita alameda de Vila Viçosa já com o Sol a estalar.

Confirmei a ideia que criei sobre o bikepacking… gostei de praticamente tudo e, naquilo que depender de mim, não foi de todo a última vez!
 
Mais uns riscos no mapa da Caixa Geral e o bom feeling de saber que há muitos mais por fazer… como a N5, N117 e, claro, a mítica N2.
 
Stay tuned! 🙂
 

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