2018 foi ano de iniciar a incursão ao mundo dos 5 Monumentos, começando com uma viagem à Bélgica que se estenderia ao norte de França. Um modelo que gosto particularmente: 1 semana, 2 provas e roadtrip pelo meio. Neste caso, a Ronde e Roubaix.
Após uma noite inteira no aeroporto devido a um voo atrasado, chegada convidativa a Bruxelas e rent-a-car com upgrade para compensar – o funcionário era do clube das duas rodas e assim que viu a caixa declarou: com uma máquina dessas e para onde vão, têm que ir mais confortáveis!
Aí vão eles em direção a Oudenaarde para levantar a dorsal, com paragem num hotel de autoestrada onde deveríamos ter passado a noite mas, explicando a situação, acabámos por dormir 4h ao final da manhã e aproveitar o pequeno-almoço.
O hotel não era particularmente bem frequentado e resolvemos ir embora antes que a Pinarello do Wiggins me começasse a fazer olhinhos…
O dia estava chuvoso e lá fizemos o resto da viagem com paragem no centro antes de levantar a dorsal. Depois de ver parque infantis com bicicletas de madeira de puxar ao coração e de babar em 2 ou 3 montras, fizemos um raide à loja e ficou marcada uma visita ao Museu da Ronde que, como verão, é imperdível.
Com o atraso do voo, o tempo ficou contadíssimo e seguimos para o check-in na zona industrial, a um par de kilómetros do centro. Parte do kit era uma t-shirt com FLANDRIEN estampado, que vesti na hora mas imediatamente me arrependi: senti-me um total e completo impostor, tinha que ganhá-la no dia seguinte!
Depois, a habitual visita à feira para equipamento e compras de última hora e, no meu caso, um isotónico do qual, tão só e apenas, me esqueci!
Regresso a Antuérpia, local da partida, montagem da bike já no hotel para não stressar e jantar na praça principal de onde é feita a apresentação oficial dos pros da prova. Por estes dias, toda a cidade respira ciclismo, isto num país que já o faz por norma. Ambiente fantástico.
Temas de última hora: precisava de um micro-ondas para fazer o energy cake já tarde, no hotel. Tudo muito complicado, “The kitchen is now closed, the personnel has lef… what? Really? Are you riding tomorrow? Then we must make this happen!” e lá fomos tratar do bolo
Seguiram-se as últimas afinações, uma espreita no mapa dos 240 Km de prova e, sobretudo, dos hellingen na 2ª parte do percurso. Prometia. E cumpriu!
Madrugada da partida em Antuérpia, parámos num parque de estacionamento o mais perto possível e, podre de sono mas com a adrenalina no máximo, foi tempo de me despedir da wonder-trupe – é sempre especial, mas fora do país ainda tem mais significado. E lá fui eu refrescar as ideias com vento e chuva, eles para café, passeio e museus… mas solidários em espírito
Partida molhada e abençoada, com direito a cuspidelas de fogo no arco da saída, volta na rotunda e para dentro do túnel vão eles, atravessando diretamente para a outra margem, onde 270º depois evoluíamos ao longo do Scheldt passando pela partida mas agora na margem e sentido contrários.
O percurso pode dividir-se em 3 fases: a primeira muito rolante e extremamente exposta, uma segunda mista, a causar desgaste entre bergs incluindo a ida ao Muur e uma terceira dedicada quase inteiramente aos helligen.
Fui rodando as pernas, acordando progressivamente, a agarrar e passar por grupos. Não valia de nada qualquer pressa, o dia seria longo e desde o início ficaram claras duas coisas: vento, e rolar forte. Tudo muito geométrico.
Antes de chegar a Sint Niklaas, num recorte a 90º dentro de uma localidade pequena, com passeios à mistura, um acidente com um carro, malta no chão. Se ainda não estava bem acordado, a partir daí fiquei.
Aí começaram mais à séria os grupos e boleias – echelons a funcionar em pleno quando o vento era lateral e a malta sabia o que fazia. Foi uma aula prática, percebia-se bem a diferença entre os patos bravos e a malta rodada de clubes, em doses iguais de tacticismo e ratice. E com feedback imediato: as pernas ferviam a cada má decisão.
Primeira paragem para abastecimento oficial em Donkmeer, lago que terá ganho alguns milímetros com uma cena surreal: o peloton, tendo apenas meia dúzia de port-a-loos disponíveis e com a maior das naturalidades, aliviou-se no lago – numa carreira de tiro ao longo de mais de 50 metros.
Arrancámos direitos a Aalst, passando por alguns campos abertos, celeiros, moínhos, tratores, lama e muito, muito vento. Aqui, novamente, a experiência e inteligência no posicionamento (ou a falta dela) metiam umas boas dezenas de watts de diferença nas pernas e fomos chegando a Zottegem.
A partir daqui começava a zona mais animada do parcours, que passa de modo “aproximar cidades” para o modo “fun zone”, com o percurso a dobrar-se sobre si próprio para apanhar o máximo do que a região tem para oferecer.
A ida a Geraardsbergen (em baixo, à direita no mapa) leva-nos a virar as costas ao novo foco do traçado e ir ao seu perímetro conhecer o Kapelmuur. Subida longa, passagem na praça com a Sint-Bartholomeuskerk, já com as barreiras para os dias seguintes. Esquerda depois da igreja, direita ao fundo e os paralelos já a dar um ar da sua graça enquanto – trabalho de casa mal feito – tentava perceber se faltavam 2 curvas ou 3. Fui no meu ritmo, sempre a pensar que não queria estoirar cedo (ainda faltavam as principais dificuldades do dia e muitos kms), mas a morder-me todo… porque é daquelas subidas míticas em que apetece precisamente dar o prego e aproveitar porque não sabemos quando, e se, lá voltamos. Disfrutei mas não dei o prego. Hei-de voltar.
Pior me senti com esta decisão quando havia um abastecimento logo após, para a malta se poder reestabelecer. Estudasses…
Pés nos pedais, curvas amplas a descer, e voltar à direção de Oudenaarde. Valkenberg, Eikenberg, e finalmente um abastecimento junto a Oudenaarde em que o corpo já dizia “por mim está bom”, mas a cabeça dizia “és mazé parvo, faltam o Koppenberg e o Kwaremont! Bora!”
Uns minutos num caminho estreito junto a um canal, cortada à esquerda e… paragem. Subiam uns 20 de cada vez para o Koppenberg. Para apresentações, basta dizer que Merckx e, mais recentemente Cancellara subiram a pé. É um tomba gigantes pela inclinação? Não! Não é nenhuma besta só por si, mas o piso… paralelos irregularíssimos, lama, humidade e 22% ali e meio. Não dá para parar, pôr de pé só com muito jeitinho e com o peso mais para trás que para a frente sob pena de perder logo a tração. Enquanto esperava e via o freakshow dos 20 ciclistas do bloco anterior (até onde dava para ver), incuti uma missão de mim para mim de subir sem desmontar.
Correu bem… até aos 22%. Fui sabotado por 3 companheiros que, depois de cair, se apresentaram a pé, a toda a largura – bem descrito pelo Geraint Thomas no Mountains according to G. e resumido em: “Momentum. Essential.”
Remontar assim que pude ganhar tração e terminar de raiva. Cabem tantas sensações, tanta história, em 700m. Chegar ao topo, com sentimento triunfante e ser recebido e felicitado com um arraial de porrada nos ossos logo à saída que é o Pavé Marieborrestraat – 2,4 kms de shake&rattle.
Taaienberg, Kruisberg. Atira-te a eles com força, procura a dureza: não é óbvia, mas deixa-se encontrar facilmente por quem a procura. Depois da sensação à saída do Kapelmuur fui deixando cada vez menos por dar.
A dupla final, à beira – mas a fugir – do KO técnico: Kwaremont e Paterberg. Do primeiro retive os placards a anunciar a cerveja homónima que me caiu no goto e ganhou um lugar no coração, isto enquanto espremia o que podia ao longo de 2,2 kms com 4% de média e que vão aos 11%. O ácido lático era aos barris e, saído meio anestesiado dos paralelos sem fim, assim que respiramos fundo entra uma valente galheta logo de seguida, curta e compacta dos 12,5% de média aos 20% para garantir que não fica nada lá. Obrigado Paterberg.
O autocolante no topo do quadro com o menu do dia dizia-me que estava a terminar, era altura de esvaziar o tanque até às cãibras e, após curva à direita a 90º em Kerkove foi contra-relógio direito à reta da meta na chegada e Oudenaarde. Primeiro enorme boleia e assim que recuperei, trabalho a fundo a 3 até à chegada.
Parei na meta da prova profissional para respirar e tirar uma chapa. Não sei muito bem o que se passou, exceto que não tirei foto nenhuma e, ligando a dizer que cheguei, me explicaram que não, não me viam… pois que a chegada da cyclo era no complexo industrial de Oudenaarde, onde tínhamos ido levantar os dorsais.
Arrastei-me autenticamente até lá, passando na praça principal agora de bicicleta, a sentir com orgulho cada paralelo e cheguei finalmente à meta completamente exausto mas feliz como um puto no Natal!
Depois do banho fiz questão de vestir a Flandrien, agora já de mérito, e iniciar um reforço calórico que havia de durar uns dias baseado em batatas e maionese.
Em resumo? Grande dose. Talvez o mais completo dos Monumentos: tem distância, vento, rolar, vento, tática, vento, subidas onde se pode fazer a diferença, vento, festa e o sentimento de estar a viver intensamente a cultura nacional de um país com divisões profundas mas onde o ciclismo é um dos, senão o principal, denominador comum. Viva a Ronde!
Dia seguinte? Um domingo de Páscoa único a ver a prova dos pros.