Depois da Ronde, Roubaix e Liège a próxima paragem no projeto dos 5 Monumentos levava-me a Itália rumo ao mais longo: 300 km cheios de estórias e um traçado peculiar que foi alterado ao longo dos anos para introduzir competitividade mais próximo do final.
Foi neste espírito que desafiei o grupo de amigos e se alistaram o Zé Pedro Abreu (que já conhecia do Madrid-Lisboa 2017) e o João Batista. Ia estar em excelente companhia.
Vôo tranquilo e, chegados ao aeroporto foi tempo de ir em busca das bicicletas, com peregrinação à porta das fora de formato.
Depois viria a melhor parte: ao irmos 3 e tendo que planear shuttle, dava para um arranjo em condições: veio uma carrinha A-Team 🙂
Havia um engarrafamento mas calhou-nos um Fangio. Só nos assustou nas primeiras guinadas, depois já éramos partners in crime no plano de chegar o mais rápido possível ao Hotel Ripamonti, em Pieve Emanuele: sui generis, enorme, em curva.
Saída para voltinha junto ao hotel, algumas zonas com um ar um bocado manhoso e aconselhados por quem conhece a não andar longe do hotel durante a noite.
Sábado ao fim da manhã apanhámos a Trenitalia rumo a uma voltinha por Milão. Passeio até ao centro, foto da praxe na Catedral, Aperol e muitos hidratos para o tanque.
Depois de passar no Castelo Sforzesco, um desvio adicional muito saboroso para visitar a magnífica Chocolat (a última vez tinha sido 2 anos antes, por ocasião da L’Étape du Tour).
Regresso a Pieve Emanuele, dissemos que não ao jantar com o Jowan Museeuw mais pela forma como foi enquadrado do que pela quantia que pediam – lendas são lendas mas achámos aquilo um bocado forçado. Jantámos na belíssima companhia uns dos outros e mais pasta e fomos descansar, que o dia seguinte iria começar cedo e acabar tarde.
Antes disso, últimos preparativos para a partida, meter os pins no jersey e sorrir perante um patrocinador cheio de personalidade.
Acordámos de manhã, tudo pronto e bem-disposto para um percurso com highlights conhecidos: frio e plano à saída, subida ao Turchino a meio do percurso e descida para a costa em Genova. Depois virar à direita e seguir a estrada da costa, passar os 3 capi (Mele, Cervo e Berta) e finalizar os últimos 30 km com a Cipressa (5,6 km a 4,1%) e por fim o Poggio di Sanremo (3,7 km a 3,7% médios, pontualmente a ir aos 8%).
Saída do hotel com a calma possível, que durou umas centenas de metros até às primeiras rotundas. Hora de enriquecer o vocabulário! Começou aquilo que havia de ser uma sortido rico monumental de insultos, quer na vertente auditiva quer gestual: cultura pura! 😉
Aos 26 km uns borrifos de chuva perto de Pavia que me fizeram lembrar do frio matinal e imaginar como seria fazê-la em Março, lembrando que estávamos em Junho – esta é a única das provas amadoras feita fora do fim de semana do evento.
Aqui os grupos já iam quentes e vivaços, com acelerações grandes ao sair das curvas, tipo acordeão a pedir decisões de vou com estes ou mudo de grupo – umas vezes para a frente e outras para trás: o sal da vida.
Perto do 81 km, em Tortona, já não víamos o João há algum tempo (soubemos mais tarde que teve um problema com a roda mas, como é seu apanágio, moeu até acabar!) e o ZP desapareceu também depois de uma aceleração (#1, também só entendido mais tarde).
Nesse preciso momento o grupo acelerava em grande com um ventinho cruzado e foi espremer vátios durante 10 km de reta.
Seguiram-se as primeiras curvas, paisagem mais rústica, tons pastéis nas casas, ruínas, armazéns – ninguém pode presumir que há um ordenamento, como é que conseguem que fique sempre bem e noutros sítios do mundo parece tudo ao calhas e abarracado? – pensei eu uma série de vezes embasbacado com a beleza dos kms que ia digerindo.
Subida para Novi Ligure e travei contacto com uma simpática figura da prova – o Favio levava facilmente as meias com mais pinta da prova.
40 km no total a subir até ao topo do Turchino, interrompidos a meio pelo 1º abastecimento. Esperei uns minutos mas sem sinal dos meus companheiros era hora de seguir.
Locais como Rossiglioni, Campo Ligure e Masone iam passando, cada vez com mais vegetação e já num planeta francamente diferente em relação à saída.
Entretanto, a subida longa só empina verdadeiramente nos kms finais, pernas já quentes e finalmente começa a picar. Ensaias uma aceleração e de repente desagoas num túnel. Sinais. Passo de Turchino. Is it over!?!? Sim!
Grande grande descida até à costa, 10 kms que ficam marcados. Pela exposição, imprevisibilidade das curvas e sobretudo pelo enquadramento, como ponto de passagem ao 3º acto. Arrependes-te de não ter tirado um par de fotos. Depois do norte frio, plano e industrializado, e de uma fase ondulante, rústica e verdejante com castelos entre curvas, é a vez da estrada de costa e das vilas à beira do Mediterrâneo.
Chegada linda a Génova, humidade e cheiro bem marcados,com saída para a icónica estrada junto ao mar.
A partir daqui andamos sempre junto ao mar, com o maior desvio logo em Arenzano. Segue-se uma passagem por Savona e desfrutar da paisagem da costa até ao 2º abastecimento, aos 200 km.
Grupos a puxar à vez, o Sol não estava incrível mas lá ia aparecendo. Troço sempre rolante, interessante q.b. e apimentado pelos capi: Mele, Cervo e Berta. Impossível desligar das histórias que li sobre os anos em que a prova foi decidida, por quem e em que sítio e imaginar de novo como seria isto 3 meses antes e de faca nos dentes.
Digeridos os capi, tinha lugar o 3º e último abastecimento aos 255. Último compasso e quando ia a arrancar o ZP passou que nem uma bala! 🙂
Veio a Cipressa e, por um lado tenho pena de não ter tirado fotos digitais mas trouxe comigo 2 postais: as oliveiras nas primeiras curvas da Via Cipressa e uns velhotes já no casario do fim da subida. Flashes. Campagnolo. Cromados. Esforço. Heroísmo. Fãs. Não se explica, vive-se. Estas são as estradas.
Poggio, o momento de seleção por excelência. Quem tiver pernas tenta romper as dos outros na subida logo a partir das estufas e sempre a fundo. Nova seleção depois da igreja, mergulhando para uma descida vertiginosa. Place your bets. Eu apostei em manter os travões vivos e desenhar as parabólicas o melhor que podia. Deu para sentir os arrepios nos primeiros patamares, imagino aquilo com chuva e rivais diretos.
Entrega no último km, a rolar forte de novo em potência depois do modo daredevil cirúrgico na descida e depois de uma última rotunda, entra-se na finish line com 200m marcados e um pedido descarado de sprint, a última das formas de desempate deste traçado.
A chegada depois de um dia longo deu especial gozo porque estava por esta altura a gerir com pinças a lesão prolongada do joelho e tinha sido brindado há poucas semanas com a brilhante opinião de um especialista de ortopedia de que não voltaria a correr.
A cumprir religiosamente a fisioterapia e “apenas” com a excepções de ir a Liège e fazer o Challenge Lisboa, o Skierg permitiu-me manter um mínimo de forma e fechar mais este capítulo ainda que em serviços mínimos. Teria sido uma péssima ideia parar.
A última das fotos foi a escolhida por alguns media para ilustrar a prova, não sabiam era que estava a dizer lá para cima “mais um!” e a partilhar mais este momento especial.
Na chegada uma medalha ao ar, cerveja nos copos já os 3 reunidos, lá apareceu o Fabio e ficámos na conversa um bocado até ir procurar o alojamento.
Noite em Sanremo, depois de comer que nem uns brutos numa pizzeria e depois de algumas buscas infrutíferas e seguida do sacramental gelato.
Descanso dos guerreiros e regresso logo pela manhã com shuttle para Nice, onde encontramos a Provence e os seus souvenirs de alfazema – bons recuerdos e ambientadores de gaveta 🙂
De volta a Lisboa, o balanço é simples: grande companhia, belas recordações!
Impressão geral: o mais longo dos granfondos da Europa é interessante, variado q.b. e vale também pelo conhecimento que se tem do percurso e a sua história, especialmente a partir do primeiro terço da prova. Longe de instransponível, até pela altura do ano, tem a dureza que se quiser procurar. Quer a partida quer a chegada têm pontos de interesse suficientes para passar uns bons dias. Recomendo!