Depois da Ronde e de uma visita ao Velódromo Eddy Merckx foi tempo de coroar esta visita à Bélgica com uma ida a Roubaix. Mas antes, uma passagem em Kluisbergen visitar a Jowan – a mais incrível loja de bikes onde já estive. Todas as marcas e modelos de bicicletas, roupa, equipamento, secção de promos, tudo espalhado por vários pisos e bem organizado, se puderem não percam, que vale muito a pena!
Chegada a Roubaix, hotel mesmo em frente à estação de comboio com um ar bem pior do que a foto sugere e depois de um check-in estranho com a habitual conversa desinformada sobre “não poder levar a bicicleta para o quarto” a resultar num “não poder ficar neste hotel”. Depois da rábula habitual foi hora de deixar as coisas e atravessar a praça da gare para jantar no Il Bacaro, uma agradável surpresa.
Quando voltámos, pouco depois das 21h, e depois de passar por uma série de vendedores de louro prensado, o hotel estava fechado com grade e um segurança profissional que fez questão de ver os nossos documentos para entrar. Cheiro a ganza no corredor, alcatifas e cortinados a tresandar a mofo, casa de banho tipo “não toques em nada”. Acho que nem o carro de aluguer dormiu seguro lá fora.
Já era tarde e ficámos ali, mas logo no dia seguinte trocámos o alojamento para mais longe, mas uma outra França mais rural e acolhedora, numa quinta ao lado de um centro de equitação a uns 20 minutos do centro.
A passagem por Roubaix durante o dia foi algo estranha, a cidade parecia degradada mas o mais importante era mesmo chegar ao velódromo (o novo) para levantar o kit de prova.
A chegada ao histórico complexo do velódromo é uma sensação forte para quem conhece a sua história, em particular, não só pela pista em si como em pequenos grandes detalhes espalhados pela zona e, claro, os míticos duches onde é tradição lavar as marcas da prova.
De seguida, o Vélo Club de Roubaix foi um banho de história e ambiente de paixão velocipédica. Da decoração, vencedores passados, relíquias nas tendas e exposição exteriores, um regalo.
Volta para o alojamento, seleção do kit para o dia seguinte de acordo com a meteorologia e uma última vista de olhos no percurso. Era quase dia de fazer história e viver Roubaix!
Acordar a mil e ainda madrugada arrancámos para os arredores de Roubaix, onde encontrámos uma cena surreal com dezenas de autocarros no estacionamento de uma zona comercial, cada um deles com centenas de bikes a serem arrumadas intercaladas com cartão.
Viagem de autocarro até Busigny, deu para bater a pestana mas o burburinho ia aumentando e as cores do nascer do dia mereciam ser vistas.
À chegada um mar de gente na rua, procurar a bike e entregar a mochila para recolher mais tarde. E uma música quase melancólica mas evocativa com o tema Paris-Roubaix enquanto aguardava a vez de partir e pensava no que aí vinha.
O percurso tem 54,5 kms de pavé, repartidos em 29 setores:
Sector 29 – km 93,5 : Troisvilles à Inchy 2,2 km (***)
Sector 28 – km 100 : Viesly à Briastre 3 km (***)
Sector 27 – km 109 : Saint-Python 1,5 km (***)
Sector 26 – km 111,5 : Fontaine-au-Tertre à Quiévy 3,7 km (****)
Sector 25 – km 119 : Saint-Hilaire à Saint-Vaast 1,5 km (***)
Sector 24 – km 130 : Saulzoir à Verchain-Maugré 1,2 km (**)
Sector 23 – km 134,5 : Verchain-Maugré à Quérénaing 1,6 km (***)
Sector 22 – km 137,5 : Quérénaing à Maing 2,5 km (***)
Sector 21 – km 140,5 : Maing à Monchaux-sur-Ecaillon 1,6 km (***)
Sector 20 – km 153,5 : Haveluy à Wallers 2,5 km (****)
Sector 19 – km 162 : Trouée d’Arenberg 2,4 km (*****)
Sector 18 – km 168 : Wallers à Helesmes 1,6 km (***)
Sector 17 – km 174,5 : Hornaing à Wandignies 3,7 km (***)
Sector 16 – km 182 : Warlaing à Brillon 2,4 km (***)
Sector 15 – km 185,5 : Tilloy à Sars-et-Rosières 2,4 km (****)
Sector 14 – km 189 : Beuvry à Orchies 1,4 km (***)
Sector 13 – km 197 : Orchies 1,7 km (***)
Sector 12 – km 203 : Auchy à Bersée 2,7 km (****)
Sector 11 – km 208,5 : Mons-en-Pévèle 3 km (*****)
Sector 10 – km 214,5 : Mérignies à Avelin 0,7 km (**)
Sector 9 – km 218 : Pont-Thibault à Ennevelin 1,4 km (***)
Sector 8 – km 223,5 : Templeuve 0,7 km (**)
Sector 7 – km 230,5 : Cysoing à Bourghelles 1,3 km (***)
Sector 6 – km 233 : Bourghelles à Wannehain 1,1 km (***)
Sector 5 – km 237,5 : Camphin-en-Pévèle 1,8 km (****)
Sector 4 – km 240 : Carrefour de l’Arbre 2,1 km (*****)
Sector 3 – km 242,5 : Gruson 1,1 km (**)
Sector 2 – km 249 : Willems à Hem sur 1,4 km (***)
Sector 1 – km 256 : Roubaix 0,3 km (*)
E aí vai ele! Algum frio, mas a excitação da saída compensava sempre. Lembro-me particularmente de uma reta interminável, ondulante, através dos campos de batalha onde há 70 anos exércitos – pessoas – se movimentaram, esconderam, dispararam uns sobre os outros, perderam o ar e perderam o chão. Quem lá passa não fica indiferente.
Ao km 11 comecei a abordagem ao pavé como me pareceu intuitivo: com gáspea no alcatrão e a “aguentar” nos paralelos. Havia de tudo: os kamikazes que haviam de rebentar daí a pouco, os cautelosos, os pros e aqueles ainda à procura da melhor receita. Ia observando, experimentando e tirando notas.
Ao fim de uma hora e meia, abastecimento em abastecimento em Verchain-Maugré e, ao fim de alguns sectores, começa a ficar mais clara a melhor forma de levar a coisa: um sector é, na realidade, um burst de 4 ou 5 minutos e então, completamente ao contrário da ideia inicial, é tempo de “descansar” no asfalto rolante.
É que pedalar em força gera um ligeiro mas importantíssimo lift que castiga menos o derriére e deixa a própria bike mais livre e menos refém do peso estático do saco de batatas que leva em cima. Mais – nota-se um efeito de “voar” de crista em crista dos paralelos, em vez de percorrer e impactar em cada irregularidade.
Não é fácil de explicar mas, acreditem, é uma experiência semi-religiosa. Depois deste momento – uma verdadeira iluminação no meu caso – é um sentimento indescritível atacar cada troço de paralelos.
Claro que não podia ser só magia. Vinha com o joelho já um bocado maltratado ao início de ano intenso mas o pavé foi tratando de o fazer em papa. Ao fim de uma hora estava quase impossível e em La Chapelle, neste espaço à beira da estrada antes de esquina ficou-me na memória. As dores deixaram de ser geríveis e obrigaram-me a parar uns minutos. Pensei que não ia acabar, tal era o nível de inflamação no joelho e as pontadas do VMO, já completamente inflamado, ao ponto de estar fisicamente mal-disposto. Acabei por ajustar a altura do selim para procurar algum conforto e aguentar até ao fim (spoiler: acabei, mas iria ser o início de um longo calvário).
Mas chegava o km 78 e, com ele, um dos sectores mais lendários da prova, a Trouée d’Arenberg, onde não se vence mas se pode perder a corrida. Foi introduzida em 1968 e Jean Stablinky, embora reninente, aconselhou-a à organização. A resposta foi “pedimos um sector de pavé, não um conjunto de buracos”. E a decisão foi incluí-la na prova. Como não gostar?
“Not many people know it but an underground roadway runs directly below the Tranchée. I am the only man to have walked under and raced over the cobbles of Arenberg”
Jean Stablinsky
O sector estava bastante húmido como é normal, precisamente por atravessar uma floresta, e tinha barreiras nos primeiros 50m. Havia um magote de ciclistas parados e a hesitar entre as opções de ir dentro – festival – ou fora – segurança. Opá, não vim até aqui para ir pelo alcatrão!
Deslizes constantes, 2 quedas à minha frente, uma que me levou as rodas à erva e decidi arriscar e sair dali – o truque foi desligar o fio e acelerar com as ganas que tinha – e foi aqui que aprendi verdadeiramente a andar e a gostar dos cobbles!
Saí de Arenberg todo rebentado e em êxtase! Foi aqui que percebi, foi o momento “eureka!”. A arfar, sorriso nas ventas e gancho à esquerda no fim para seguir viagem.
Os sectores iam passando e, no meio disto tudo, uma nota: não gostei de fatbikes nem de mountain bikes lá… tenham paciência. Não têm lugar. Arranjem outro dia, horário, desfasem os tempos de partida, assim não faz sentido!
Bom, mas menos refilice e mais watts nisso. Entra na berma, sai da berma. Vai na crista, declive acentuado, do outro lado buraco, sai daqui senão malhas.
Regressa à berma, poça, ervas, caraças não se vê nada! Fosga-se, esta correu bem, tive sorte à mistura.
Acelera, berma, vai haver curva, posiciona-te. Gaita!, quero voltar, olho, estou fechado por dentro… pico de adrenalina, vou ao chão?, uso os encaixes dos pedais e faço-a saltar comigo um palmo para o lado depois do outro artista ter passado e menos de um metro antes de eu ficar sem faixa. Ouço o coração nos ouvidos e rio-me como um puto.
Lembro-me de um sector particularmente curva à direita no fim. Foi onde percebi os rudimentos sobre temporizar as acelerações de acordo com a leitura das bermas e do que vem a seguir.
Abastecimentos em Beuvry e 1h depois em Templeuve, e entretanto vinha Mons-en-Pévèle aos 125k e o Carrefour de l’Arbre aos 155, já com muitas roulottes para o dia seguinte e uma mudança de direção que tem que ser um petisco com vento como deve ser.
Acabou-se o pavé, últimos 7km, cada vez íamos estando mais próximos de Roubaix e ao chegar aos últimos kms, alguns, já esgotados, que iam no meu grupo gritavam “what for?” – não compreendiam a vontade de acelerar e esmifrar os últimos cartuchos.
Já muito perto do velódromo apanhámos uma série de paragens em vários semáforos quebraram muito o ritmo, mas a sensação de antecipação de um momento lendário era maior que qualquer coisa.
E é quando viramos à esquerda e passamos junto às sebes que dá uma vontade incrível de parar o tempo.
A chegada velódromo é feita com uma primeira meia-volta e depois volta completa para fechar. Não é possível nem prático ficar a admirar, mas é a vontade que dá. Depois de ter andado num velódromo indoor, este parecia muito pouco pronunciado, mas a verdade é que cada ondulação, as letras pintadas “ROUBAIX”, as bancadas…
Não queria cortar a meta, queria mais umas voltas e mais um último sector para deixar tudo até as cãimbras bloquearem os esticões na corrente. Fecha lá isso, hás-de voltar!
A bicicleta que veio “a casa”. A Specialized… Roubaix, a dreambike de sonho do meu Pai veio finalmente, como prometido, fazer aquilo para que foi desenhada.
Medalha ao alto, mais uma no saco e esta, talvez, a mais simbólica e sui generis. A Raínha das Clássicas. Adorei.
29 sectores sem cair nem furar. A pressão foi muito perto do ideal – ainda não usava tubeless e não tive snake bites.
A fita do guiador com o nome da prova, que já tinha antes, incluía e enrolava à volta de uns pads de gel para colocar diretamente no guiador. Costuma-se dizer que quem faz a prova fica uma semana a entornar o café 🙂
Sim, as mãos, pulsos e cotovelos iam levando forte e feio mas quanto mais relaxado for o grip, melhor.
Os míticos balneários de Roubaix, contruídos nos anos 40. Cada um com uma chapa com o nome de um grande vencedor, ditou a ordem que me calhasse o de Coppi – Il Campeonissimo. As correntes que se puxam para ligar a água, a terra e lama a escorrer pelos ralos e as dores do corpo a ir e a vir, ainda com memória viva do arraial de porrada que tinha acabado de levar enquanto voltava a parecer uma pessoa normal, pelo menos de aspecto.
Dia seguinte, regresso ao velódromo para um momento especial. Depois de ter escapado uma semana antes na Ronde, Peter the Great perfilava-se como um dos principais favoritos. Rockstar.
Um privilégio provavelmente único, dada a chegada no velódromo: assistir aos últimos metros no centro da ação! Os finishers do dia anterior tinham direito a assistir ao grande final na fanzone, no centro do relvado com um ponto de vista especial sobre a volta e meia que conclui a prova.
E que final foi! Chegada ao sprint, medidas bem tiradas e uma estocada de mestre a fechar! Incrível! Chapeau!
Saída a abrir para o aeroporto em Bruxelas, mesmo a tempo de apanhar o voo de volta a Portugal. Ronde, road-trip, velódromo Eddy Merckx e Roubaix!
Semana de sonho! Dá para pedir mais? Só mesmo voltar!